segunda-feira, 28 de abril de 2014

A personagem

 Era formada em direito e exercia muito bem seu trabalho, mas era por paixão escritora. Tivera um ou dois livros lançados, nada suficiente para que pudesse viver só disso. Dedicava-se, então, ao seu "ganha pão" e em seu tempo livre fazia o que tinha prazer em fazer. Os minutos que passava em frente ao computador era seu momento de paz na alma. Em casa já fazia tempo que as coisas não iam bem e seu apertado escritório era como um refúgio para ela, um casulo onde ela poderia dar asas aos pensamentos que lhe enchiam a cabeça durante o dia, fossem eles bons ou ruins, ali sua mente abria as portas e deixava livre a imaginação. Criara então seus personagens, deu-lhes vida, e amou-os, passou a viver com eles todo tempo que podia, dormia e acordava com eles, voava e nadava com eles.
A cada dia perdia um pouco de si mesma para dar vida à suas criações, e então surgiam nela diversas pessoas diferentes, altos, baixos, empresários e mendigos, tudo quanto se pode imaginar. Com o tempo, sua dedicação aos seus diversos personagens tornara-se obsessão, de tanto se entregava à eles foi nascendo dentro dela diferentes personalidades. De inicio não era claramente percebido, era apenas um novo tipo de perfume que era preferencia de uma personagem chamada Julia, ou então uma comida que antes não gostava mas que era o preferido da criatura Victor. Porém, boas histórias não são apenas bons perfumes ou comida, e ela começou a tomar atitudes que fizeram com que as pessoas de sua convivência percebesse que algo estava fora de controle. Começou com uma personagem de meia idade que tinha muitos amantes, a história não estava rendendo e ela resolveu incorporar a personagem, já estava há meses separando do marido mas não era oficial, então envolveu-se com um rapaz do trabalho, o que gerou a demissão dos dois. Daí parar frente, com mais tempo para imaginar, foi se tornando um vício ser sua própria criação. Vieram os que se envolviam com drogas, e ela se vestia deles, usava do mesmo que usavam para saber como sentiam e assim poder escrever. Estava mentalmente debilitada, isso era claro, mas seu marido a deixara e não lhe restaram amigos. Com o dinheiro que havia guardado ela realizou a vontade de cada personagem, entre viagens e vícios, ela foi se afundando aos poucos, e sem mais ninguém para lhe ajudar ela teve seu surto final. Criou o personagem que ao final da história se mataria, se jogaria do oitavo andar, coincidentemente o andar em que ela morava, e naquela tarde de outono ela colocou um ponto final, nas suas histórias e na sua vida.